Coluna do RotaO Fisco Vai Querer Tributar o Passado? O Perigoso Vácuo da Isenção dos Dividendos até 2025
1) Introdução
O Projeto de Lei nº 1.087/2025, aprovado no Congresso Nacional, propõe uma alteração profunda no regime de tributação das pessoas físicas, com impacto direto sobre a isenção dos lucros e dividendos apurados até o exercício de 2025.
Entre seus dispositivos, destacam-se os incisos II e III do §3º do art. 6º-A e as alíneas “b” e “c” do inciso XII do §1º do art. 16-A, que condicionam a manutenção da isenção à aprovação societária realizada até 31 de dezembro de 2025.
A Nota Técnica CFC nº 013/2025 demonstra que tal exigência é materialmente impossível, contabilmente inadequada e juridicamente incompatível com o direito societário e com os princípios fundamentais da contabilidade. Com base nesse documento técnico, este despretensioso texto analisa a inviabilidade da exigência, seus impactos e a necessidade de uma solução legislativa segura para evitar conflitos interpretativos futuros.
2) A Inviabilidade Contábil, Societária e Tributária
A legislação societária brasileira impõe um rito rígido para a aprovação das contas. O art. 132 da Lei 6.404/76 e o art. 1.078 do Código Civil determinam que a assembleia ordinária deve ocorrer nos quatro primeiros meses do ano subsequente ao encerramento do exercício, após a conclusão das demonstrações financeiras e, quando aplicável, da auditoria independente.
Assim, nenhuma sociedade pode aprovar resultados antes do encerramento do exercício sem violar princípios essenciais da contabilidade, como:
Competência,
Representação Fidedigna,
Prudência,
Integridade da informação.
A Nota Técnica destaca que antecipar aprovações significaria deliberar com base em dados incompletos, ainda não auditados, criando risco de retrabalho contábil, inconsistências societárias e insegurança jurídica generalizada.
Do ponto de vista tributário, o Decreto-Lei nº 1.598/1977 vincula a apuração do lucro tributável às demonstrações elaboradas conforme a legislação comercial. A tentativa de vincular a isenção ao “ato de aprovação”, e não à data da apuração contábil, rompe com a legalidade tributária (CF, art. 150, I; CTN, art. 97) e com a coerência histórica entre contabilidade e tributação.
3) Os Impactos Sistêmicos e a Lógica do Veto
A exigência criada pelo PL 1.087/2025 acarreta efeitos sistêmicos relevantes:
Comportamentos artificiais, com empresas encerrando balanços apressadamente para atender exigências tecnicamente inviáveis;
Perda de confiabilidade das demonstrações financeiras, que passariam a refletir estimativas, e não fatos contábeis completos;
Exposição de administradores, contadores e auditores a potenciais responsabilizações;
Ruptura da coerência normativa, ao atrelar a tributação a atos societários e não à apuração de resultados.
A Nota Técnica CFC nº 013/2025 evidencia a impossibilidade técnica da regra. Entretanto, a solução legislativa precisa ir além do veto puro e simples, considerando que um veto isolado pode gerar novos problemas, como analiso a seguir.
4) O Risco de Insegurança Jurídica com o Veto e a Possível Invocação do Art. 287 da Lei das S.A.
Embora seja tecnicamente correta a conclusão de que a isenção dos lucros apurados até 2025 está assegurada pela alínea “a” do inciso XII do §1º do art. 16-A, a qual não depende da alínea “c” — existe um risco institucional e pragmático que não pode ser ignorado.
Durante o Congresso da ABRADT, realizado recentemente em Belo Horizonte, com mais de 1.400 participantes, incluindo auditores da Receita Federal, juristas e alguns dos mais importantes tributaristas do país, verificou-se consenso quanto ao perigo de um veto integral da alínea “c”.
Na mesa de debate da qual fui palestrante, destacou-se um cenário preocupante:
Na ausência de uma regra de transição clara, o Fisco poderá tentar sustentar que a isenção dos estoques de dividendos se encerra em 31.12.2025, ou seja, qualquer valor pago a partir dessa data, deverá sofrer retenção de 10%.
Essa tese, embora equivocadíssima, pode tentar se apoiar no art. 287, II, “a”, da Lei das S.A., que prevê:
prescrição de 3 anos para a ação de haver dividendos,
contados da data em que tenham sido postos à disposição do acionista.
O perigo está no seguinte:
Se o legislador vetar a alínea “c” sem substituir sua disciplina, cria-se um vácuo normativo sobre o marco de “disponibilização” dos dividendos apurados até 2025. Esse vazio pode estimular a seguinte tese fiscalista:
se a lei não estabelece mais o marco temporal (2026, 2027 e 2028),
então aplica-se o prazo societário padrão,
e, após três anos, os dividendos não exigidos ou não colocados à disposição perderiam a isenção.
Essa interpretação é juridicamente incorreta, por razões claras:
A isenção decorre da data de apuração, não da data de pagamento, conforme estabelece a alínea “a”;
O art. 287 regula prescrição civil, e não tributação;
“Disponibilização societária” não se confunde com o fato gerador do imposto de renda.
Ainda assim, o risco político-institucional é real, pois a Receita Federal historicamente:
interpreta normas de forma extensiva para ampliar a base tributária;
recorre a argumentos econômicos para sustentar teses arrecadatórias;
exerce forte influência sobre julgamentos administrativos.
Assim, um veto puro e simples pode abrir espaço para interpretações equivocadas, capazes de gerar:
milhares de litígios,
insegurança para empresas e sócios,
e um contencioso bilionário, semelhante ao observado nos debates sobre JCP e ágio.
Em síntese:
A Nota Técnica do CFC está tecnicamente correta, mas o veto deve ser calibrado à luz da segurança jurídica. A ausência de transição clara pode estimular leituras distorcidas do art. 287 e inaugurar um contencioso tão desnecessário quanto perigoso.
Conclusão
A exigência de aprovação societária até 31/12/2025 é tecnicamente inviável e deve ser revista. Entretanto, o veto isolado da alínea “c”, sem fórmula substitutiva, pode ampliar, e não reduzir a insegurança jurídica, ao abrir margem para interpretações fiscais que pretendam limitar temporalmente a isenção dos lucros acumulados com base no art. 287 da Lei das S.A.
Ao corrigir a impropriedade técnica, o legislador não pode criar um vácuo que permita à Receita Federal sustentar, ainda que erroneamente, que a isenção dos dividendos acumulados se encerra em 2025.
A solução adequada exige uma regra de transição clara, que:
preserve a isenção pela data de apuração,
evite interpretações oportunistas,
e garanta segurança jurídica aos contribuintes.
